
Imagem ilustrativa criada com inteligência artificial.
Introdução polêmica
É quase impossível falar de rock clássico sem esbarrar em Led Zeppelin IV. O disco não apenas trouxe ao mundo “Stairway to Heaven” — talvez a canção mais idolatrada e odiada da história do rock — como também consolidou o Zeppelin como entidade quase mitológica. O problema é que, ao longo dos anos, muitos se lembram só do hino e esquecem que o álbum é um caleidoscópio sonoro que vai do folk inglês ao blues pantanoso, passando pelo hard rock puro e simples. Reduzir esse disco a uma música é como olhar para a Mona Lisa e falar apenas do sorriso.
Contexto histórico
Em 1971, a banda já havia conquistado o topo das paradas com três discos que mesclavam peso, virtuosismo e improviso. Mas também enfrentava críticas ferozes da imprensa, que os acusava de serem uma banda de “roubo de bluesmen”. Led Zeppelin IV, lançado sem título oficial e sem nome da banda na capa, foi a resposta arrogante e brilhante: um álbum que dispensava palavras e deixava apenas símbolos. Gravado em parte no mítico Headley Grange, com equipamentos móveis dos Rolling Stones, o disco capturou a crueza e a grandiosidade que definiram a década.
Faixa a faixa: guia de audição
Black Dog
O riff é um labirinto de pausas e síncopes que até músicos experientes penam para seguir. Plant surge como um xamã possesso, despejando frases soltas de desejo que não fazem o menor sentido. A letra é desconexa, e o título não tem nada a ver com ela — veio de um vira-lata preto que rondava Headley Grange durante as gravações. O resultado é uma das aberturas mais enérgicas da história do rock, sustentada pelo groove monstruoso de Bonham e pela interação quase telepática da banda. Musicalmente é hipnótica: cada entrada vocal parece surgir do nada, mas sempre no lugar certo. A canção é pura tensão sexual em forma de som. E que fique registrado: nunca haverá análise dessa letra aqui, porque simplesmente não existe o que analisar.
Rock and Roll
Aqui o Zeppelin decide prestar tributo à raiz do gênero. O andamento acelerado, a batida direta de Bonham e o piano pulsante de Jones recriam o espírito dos anos 50, mas com potência nuclear. Page dispara riffs que poderiam estar em qualquer clássico de Chuck Berry, só que com distorção a mil. É quase um exercício de estilo, mas feito com tanta energia que soa vital até hoje. Não há firulas, não há pretensão: é uma ode à simplicidade que fundou o rock, mas elevada ao extremo da intensidade. Tocada ao vivo, essa faixa se tornava catarse coletiva.
The Battle of Evermore
Mandolins, vozes em diálogo e atmosfera medieval. Page e Plant aqui vestem roupas de bardos, e a participação de Sandy Denny adiciona uma dramaticidade única. A música funciona como um respiro dentro do disco, mas não é mero interlúdio — é uma viagem folclórica que revela a obsessão do Zeppelin por mitologias britânicas. O diálogo vocal cria um clima ritualístico, e a ausência da bateria de Bonham dá ainda mais força ao caráter místico da canção. É o Zeppelin provando que podia soar épico sem precisar de volume ensurdecedor.
Stairway to Heaven
A progressão mais dissecada da história do rock começa pastoral, com violão acústico e flauta doce, quase pastoral inglesa. Aos poucos, baixo e bateria se insinuam, preparando o terreno para a explosão elétrica. O solo de Page é um estudo de construção: cada nota é um passo a mais rumo ao clímax. A canção já foi saturada pelo excesso de culto, mas negar seu poder é impossível. Ao vivo, tornava-se ainda mais monumental, esticada até a exaustão. É, sem dúvida, a faixa que transformou o Zeppelin em mito, e o rock em religião.
Misty Mountain Hop
Uma das canções mais subestimadas do disco. O teclado pulsante de John Paul Jones cria um groove quase funky, incomum na época, enquanto a bateria de Bonham adiciona peso tribal. Plant, inspirado pelo universo de Tolkien e pela psicodelia tardia, dá o tom irônico de alienação juvenil. Musicalmente, é um Zeppelin mais dançante, que apontava para experimentações futuras. Não é a faixa mais lembrada, mas prova como a banda sabia ser grooveada sem perder identidade.
Four Sticks
Caótica, tribal, quase hipnótica. O título vem do fato de Bonham tocar com quatro baquetas, criando uma cadência impossível de reproduzir. A estrutura é irregular, quase um quebra-cabeça rítmico, e a voz de Plant surge como mais um instrumento percussivo, sem grandes preocupações líricas. É uma das faixas menos acessíveis do disco, mas justamente por isso mostra o lado experimental do Zeppelin. Uma música que exige entrega do ouvinte, mas recompensa com pura brutalidade sonora.
Going to California
Delicadeza pura. Aqui, Plant abandona o grito e adota o tom trovador, em uma balada folk que deve muito a Joni Mitchell. Page acompanha com violão acústico cristalino, enquanto Jones reforça a base com mandolim. É um momento de vulnerabilidade rara em meio à muralha sonora do álbum, provando que o Zeppelin sabia dialogar com a folk music da época sem soar forçado. Uma canção de respiro, mas que permanece como uma das mais belas do catálogo da banda.
When the Levee Breaks
O fecho é apocalíptico. Bonham gravou sua bateria em uma escadaria de Headley Grange, criando um eco colossal que se tornou um dos samples mais usados da música moderna. O riff de Page é denso como lama, e a gaita distorcida acrescenta ainda mais desespero. A canção pega um blues dos anos 20 e o transforma em avalanche elétrica, arrastando o ouvinte para um cenário de fim de mundo. É impossível ouvir sem sentir o peso esmagador da produção. Um encerramento que deixa claro: o Zeppelin não apenas tocava rock, eles redesenhavam os limites dele.
Produção e Estética
Poucos discos capturam tão bem o espírito de uma banda em seu auge quanto Led Zeppelin IV. Gravado em parte em Headley Grange, uma mansão do século XVIII no interior da Inglaterra, o álbum deve muito ao ambiente. O estúdio móvel dos Rolling Stones foi levado até lá, e Page explorou ao máximo os espaços naturais da casa para capturar sons que soam gigantescos até hoje.
O exemplo mais famoso é a bateria de Bonham em “When the Levee Breaks”: registrada em uma escadaria de pedra, com microfones posicionados no alto, criando um eco natural que se transformou em marca registrada e base para samples infinitos em hip hop e música eletrônica. Esse tipo de ousadia técnica mostrava que Page não era só guitarrista, mas também arquiteto sonoro.
John Paul Jones, sempre subestimado, foi essencial na construção das texturas: teclados em “Misty Mountain Hop”, mandolim em “Going to California” e arranjos que equilibravam a grandiosidade com detalhes sutis. É o disco em que cada integrante brilha sem competir pelo centro das atenções.
A estética visual também contribui para o mito. Nada de nome da banda na capa, nada de título. Apenas uma pintura velha de um homem com feixes de lenha nas costas, pendurada em uma parede descascada. O encarte trazia os quatro símbolos escolhidos por cada integrante — misticismo e individualidade estampados como código secreto. Foi a forma de dizer: não precisamos nos explicar, a música fala por nós.
O resultado é uma produção que une crueza e sofisticação. Um álbum que soa orgânico, vivo, como se tivesse sido arrancado da terra e polido até virar diamante.
Repercussão e Legado
Quando Led Zeppelin IV chegou às lojas em novembro de 1971, a crítica estava dividida: alguns viam a banda como plagiadores de blues, outros como profetas de uma nova era do rock. O álbum calou os céticos. Em poucas semanas já era um fenômeno comercial — só nos Estados Unidos vendeu mais de 37 milhões de cópias ao longo das décadas, tornando-se um dos discos mais vendidos da história.
A crítica, que antes torcia o nariz, se rendeu. A Rolling Stone, que havia detonado os primeiros discos do grupo, reavaliou anos depois e colocou Led Zeppelin IV em listas dos “500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos”. A NME e a Mojo também o citam recorrentemente como obra-prima, e a Pitchfork, em retrospectiva, chamou o álbum de “manual definitivo do hard rock”. Ou seja: a imprensa que antes acusava a banda de oportunismo acabou reconhecendo sua força criativa.
E o público? Transformou “Stairway to Heaven” em hino eterno, tocado até a exaustão em rádios, casamentos, funerais, e até proibido em algumas lojas de instrumentos musicais de tanto ser testado por aspirantes a guitarristas. O álbum, porém, não vive apenas desse mito: “Black Dog”, “Rock and Roll” e “When the Levee Breaks” continuam sendo pedras fundamentais no repertório de qualquer banda de rock pesado.
O legado também se estende muito além do rock. O groove de Bonham em “When the Levee Breaks” virou sample obrigatório no hip hop — Beastie Boys, Dr. Dre e Massive Attack beberam dessa fonte. O experimentalismo rítmico de “Four Sticks” abriu caminho para misturas de rock com música do Oriente Médio. Já a delicadeza de “Going to California” mostrou que o peso do Zeppelin era também capaz de soar etéreo e intimista.
Cinco décadas depois, Led Zeppelin IV segue intocado em seu pedestal: não apenas um álbum clássico, mas uma cartilha de como fundir peso, técnica e misticismo em um só objeto sonoro. É mais que música — é um ritual que ainda ecoa.
Leia também
- Paranoid (1970): Black Sabbath e o nascimento do heavy metal
- The Dark Side of the Moon (1973): a viagem definitiva do Pink Floyd
- Rock nacional dos anos 80: auge e queda
- As bandas que envelheceram mal (e por quê)
- O legado dos grandes guitarristas
Questões que não querem calar
Por que o álbum não tem título oficial?
Page queria que a música falasse por si. Os símbolos nos encartes representavam cada integrante.
“Stairway to Heaven” é mesmo a melhor música de todos os tempos?
Depende de quem responde. Para uns, sim. Para outros, é apenas a mais saturada.
O riff de “Black Dog” foi roubado de alguém?
Não. Mas, como quase tudo no Zeppelin, há ecos de blues tradicionais.
Por que “When the Levee Breaks” é tão cultuada por DJs?
Porque a batida de Bonham é um dos samples mais usados da história.
Por Rafael Drumond
Esse é apenas um lado da conversa. Qual é o seu? Comente e participe da discussão.
