
Imagem ilustrativa criada com inteligência artificial.
Em 1967, os Beatles chegaram ao topo do mundo — e começaram a despencar logo em seguida. O auge criativo, técnico e cultural da banda coincidiu com o início do seu colapso interno. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band não foi apenas um disco, mas um símbolo de um tempo em que o rock acreditou poder mudar o mundo. Só que, como toda utopia, o sonho psicodélico também teve um preço: egos inflados, drogas, rupturas e a lenta dissolução de uma das maiores parcerias da história da música.
Sgt. Pepper: o estúdio como palco e prisão
Sem mais turnês, sem o barulho ensurdecedor das fãs, sem necessidade de se provar ao vivo — os Beatles estavam finalmente livres. E essa liberdade virou um vício.
No estúdio Abbey Road, sob o comando do produtor George Martin, criaram Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), um dos discos mais influentes da história. A ideia nasceu de Paul McCartney: criar uma “banda dentro da banda”, um alter ego que lhes permitisse compor sem amarras.
A partir daí, a realidade se dissolveu em psicodelia. O álbum soa como uma colagem de sonhos: “Lucy in the Sky with Diamonds” e suas paisagens oníricas; “Being for the Benefit of Mr. Kite!”, inspirada em um cartaz de circo vitoriano; e “A Day in the Life”, a síntese de tudo — vida, morte e absurdo — com orquestras explodindo em dissonância.
A capa, com dezenas de ícones — de Karl Marx a Marilyn Monroe —, virou um manifesto cultural. O rock agora era arte conceitual, não apenas diversão.
Mas, enquanto o disco encantava o mundo, a banda começava a se fragmentar por dentro.
Paul McCartney, o perfeccionista, passou a comandar as sessões com mão de ferro, ditando arranjos e exigindo dezenas de tomadas. Lennon, cada vez mais alienado e entregue a experiências químicas e filosóficas, se irritava com o controle de Paul. George Harrison, espiritualmente distante e cansado de ser subestimado, sentia-se um coadjuvante. Ringo, muitas vezes sem o que fazer, via o clima azedar.
O resultado? Um disco perfeito — mas que custou caro à convivência entre os quatro.
O psicodelismo e a perda do chão
Os Beatles mergulharam de cabeça na contracultura. LSD, viagens à Índia, gurus e meditação transcendental moldavam a nova fase da banda. Lennon descreveu o período como “uma tentativa desesperada de encontrar sentido quando tudo parecia um teatro”.
O estúdio virou laboratório. Fitas rodavam ao contrário, vocais eram distorcidos, instrumentos surgiam de universos improváveis. Tudo valia. Mas quanto mais se distanciavam do palco, mais perdiam a noção de conjunto. A banda que outrora funcionava como um só organismo se transformava em quatro mentes gravando em paralelo.
Magical Mystery Tour: o primeiro tropeço
Depois de Sgt. Pepper, o mundo esperava outro milagre. Mas o que veio foi confusão.
Magical Mystery Tour (1967) começou como um projeto de Paul McCartney para um filme psicodélico sobre uma viagem de ônibus — uma metáfora meio maluca sobre o acaso e a imaginação. O resultado foi um fiasco. O filme foi massacrado, o roteiro não fazia sentido e a crítica britânica desceu o sarrafo.
Mas, musicalmente, o projeto ainda tinha momentos de puro brilho. “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” mostravam Lennon e McCartney como yin e yang: o primeiro, introspectivo e surreal; o segundo, nostálgico e tecnicamente impecável.
Ainda assim, algo havia quebrado.
Em agosto de 1967, Brian Epstein, o empresário que moldara os Beatles desde o anonimato, morreu de overdose acidental. Ele era o mediador, o equilíbrio entre o caos criativo e o pragmatismo comercial. Sem ele, a banda perdeu o norte. Paul assumiu o controle — e isso não agradou a ninguém.
The White Album: genialidade e guerra fria musical
De 1968 em diante, os Beatles deixaram de ser uma banda. Tornaram-se quatro artistas competindo dentro da mesma parede de estúdio.
Gravado entre maio e outubro, The Beatles — o famoso White Album — é um diário de conflitos disfarçado de obra-prima.
Durante as sessões, Yoko Ono começou a frequentar as gravações ao lado de John Lennon, quebrando um pacto silencioso entre os integrantes: as companheiras nunca entravam no estúdio. Paul e George ficaram incomodados, e o clima azedou de vez.
Mas Lennon não recuou. Levava Yoko para todas as tomadas, trocava olhares, opinava, desafiava. Era o início da “dupla Lennon-Ono”, que logo superaria Lennon-McCartney em intensidade — e em atrito.
As tensões cresceram tanto que Ringo Starr abandonou a banda por duas semanas, exausto das brigas. Quando voltou, encontrou seu kit de bateria coberto de flores — gesto simbólico, mas inútil. A fissura já estava aberta.
Mesmo assim, entre brigas e egos, nasciam clássicos. “While My Guitar Gently Weeps”, composta por George Harrison, trouxe um convidado ilustre: Eric Clapton, que gravou o solo de guitarra a pedido do próprio George — um gesto ousado e quase desesperado para ser ouvido dentro do grupo.
O resultado é uma das faixas mais emocionais da carreira dos Beatles, e também uma confissão velada de frustração.
Enquanto isso, Lennon mergulhava no caos de “Revolution 9” — uma colagem sonora que beirava o ruído puro —, e Paul conduzia pérolas como “Blackbird” e “Helter Skelter”, essa última considerada o embrião do heavy metal.
Era um disco monumental e contraditório: 30 faixas, quatro visões de mundo, e uma banda que só existia no nome.
O ponto de ruptura
The White Album revelou uma verdade incômoda: os Beatles já não precisavam uns dos outros. Cada um gravava separado, com arranjos próprios e assistentes diferentes.
McCartney, obcecado por controle, se tornava o maestro ditador. Lennon, com Yoko ao lado, desafiava abertamente a liderança de Paul. George Harrison amadurecia como compositor, mas via suas ideias constantemente rejeitadas. E Ringo, o mais diplomático, apenas tentava manter o ritmo.
As gravações eram tensas, frias e intermináveis. O clima estava tão insuportável que George chegou a dizer: “Não sei se somos uma banda ou quatro pessoas usando o mesmo estúdio.”
O White Album é, portanto, a mais honesta das obras dos Beatles: brilhante e caótica na mesma medida.
Da utopia à implosão
Entre 1967 e 1968, os Beatles provaram que genialidade e autodestruição caminham juntas. Criaram obras que definiram a música moderna, mas romperam laços que jamais seriam reparados.
O sonho psicodélico de Sgt. Pepper virou o pesadelo existencial do White Album.
Era o fim da inocência — e o começo do fim.
Questões que não querem calar
Yoko Ono destruiu os Beatles?
Não. Ela foi catalisadora, não causa. As rachaduras já existiam; Yoko apenas as tornou visíveis.
Paul McCartney virou um ditador musical?
Sim. Seu perfeccionismo manteve o grupo produtivo, mas também afastou os demais.
Por que George Harrison trouxe Eric Clapton?
Para ser ouvido. Clapton foi sua forma de dizer: “Olhem, eu também existo.”
O White Album é genialidade ou colapso?
Ambos. É a prova de que o caos pode ser tão criativo quanto a harmonia.
Depois do White Album, os Beatles ainda eram uma banda?
Apenas no papel. Em espírito, já estavam seguindo caminhos diferentes.
Por Bruno Falcão
