O legado dos grandes guitarristas: mitos, revoluções e malabarismos

Imagem ilustrativa criada com inteligência artificial.

A palavra “gênio” é usada com uma facilidade assustadora quando o assunto é guitarra. Basta um sujeito fazer malabarismos com palhetas ou despejar notas em cascata que logo alguém grita: “esse cara é um deus!”. Mas será que todos esses ídolos merecem o pedestal? A história do rock está cheia de nomes venerados, mas poucos realmente mudaram o curso do instrumento. O resto… bem, são malabaristas que confundem virtuosismo com relevância cultural.

Vamos separar os revolucionários dos exibicionistas — e você que lute com a sua lista de favoritos depois de ler.


Jimi Hendrix: o ponto de ruptura

Antes de Hendrix, a guitarra era importante, mas raramente passava do papel de instrumento solo em canções de blues ou rock primitivo. Depois dele, a guitarra virou um manifesto. Hendrix não apenas tocava: ele incendiava cordas, microfones e neurônios.

O impacto de Purple Haze ou Voodoo Child (Slight Return) é algo que nem mesmo a história do jazz ou da música clássica tinha previsto: a guitarra distorcida como protagonista, expressando raiva, psicodelia, lirismo e caos ao mesmo tempo. Sua versão de The Star-Spangled Banner em Woodstock não foi só música — foi política, guerra, barulho, poesia.

Hendrix não precisava de mil notas por segundo. Ele dobrava o som ao seu redor, transformava microfonia em arte. Se hoje guitarristas ainda brincam com pedais, efeitos e whammy bars, é porque Hendrix mostrou que não havia limites. Ele não foi apenas um “grande guitarrista”: foi o divisor de águas.


Tony Iommi: o arquiteto do peso

Deus do heavy metal? Não, arquiteto. Tony Iommi é o responsável por pegar a guitarra e transformá-la em uma máquina de guerra sonora. E ironicamente, fez isso por acidente: depois de perder parte dos dedos em uma prensa de metal, adaptou próteses improvisadas e passou a tocar de forma diferente.

Essa limitação virou estilo. Onde outros buscavam velocidade, Iommi buscou peso. Iron Man soa até hoje como um trovão metálico. Paranoid tem dois minutos e meio que praticamente definiram todo um gênero. Children of the Grave parece saída de um pesadelo apocalíptico.

A genialidade de Iommi está em mostrar que a simplicidade pode ser mais revolucionária que a técnica. Enquanto outros se perdiam em escalas, ele criou riffs que qualquer adolescente podia tocar — e que continuam ecoando em estádios e garagens. É impossível imaginar o metal sem ele.


Eddie Van Halen: o último grande revolucionário

Eddie Van Halen chegou nos anos 70 como um meteorito. O solo de Eruption não é apenas virtuosismo — é a reinvenção do instrumento. O tapping, que até existia de forma tímida, virou linguagem universal graças a ele.

Mas Eddie não era só velocidade. O riff de Ain’t Talkin’ ‘Bout Love mostra que sabia criar hinos acessíveis. Em Panama, entregou diversão com técnica refinada. E em Hot for Teacher, transformou a guitarra em espetáculo cômico e brilhante ao mesmo tempo.

O segredo de Eddie é que ele nunca soou como um robô. Diferente de tantos shredders que vieram depois, Eddie tinha musicalidade, swing, senso de humor. Ele sabia que o palco era entretenimento, e não apenas demonstração de técnica. É por isso que seu legado permanece vivo: ele foi provavelmente o último guitarrista a redefinir a forma como o mundo inteiro enxergava a guitarra.


Clapton e Page: mitos construídos

Eric Clapton foi chamado de “Deus” nos anos 60. Mas sejamos francos: esse título é mais marketing do que revolução. Seu trabalho em Crossroads (com o Cream) é histórico, sua participação em Layla (com Derek and the Dominos) é marcante, mas Clapton não reinventou nada. Ele refinou o blues elétrico britânico. Grande guitarrista, sim. Revolucionário, não.

Jimmy Page, por outro lado, foi a mente criativa por trás do Led Zeppelin. Seus riffs em Whole Lotta Love, Black Dog e Kashmir praticamente moldaram o hard rock. Mas ao vivo, Page era uma incógnita: genial em alguns dias, desastroso em outros. Ainda assim, seu impacto é inegável. Page ajudou a criar o mito da guitarra como espetáculo, mesmo que nem sempre entregasse técnica impecável.


Yngwie Malmsteen: o circo do neoclássico

Aqui está o divisor de opiniões. Malmsteen é um virtuoso? Sem dúvida. Seu solo em Black Star ou a avalanche de notas em Far Beyond the Sun mostram um domínio técnico absurdo. O problema é que sua música raramente transcende o exibicionismo.

Malmsteen toca como se estivesse sempre competindo em uma corrida de Fórmula 1. Rápido, preciso, impressionante — mas onde estão os hinos que grudam na memória coletiva? Quantas de suas músicas são reconhecidas fora do círculo dos guitarristas? Poucas.

Enquanto Iommi criou riffs universais com dois dedos mutilados, Malmsteen cria escalas intermináveis que impressionam apenas músicos. É a diferença entre arte e espetáculo de circo.


Joe Satriani e Steve Vai: técnica em caminhos distintos

Joe Satriani é uma exceção rara: um guitarrista técnico que conseguiu soar acessível. Surfing with the Alien é um clássico que até quem não toca guitarra reconhece. Always with Me, Always with You tem melodia suficiente para emocionar sem precisar de exageros. Satriani mostra que é possível unir virtuosismo e musicalidade.

Steve Vai, por sua vez, é um caso curioso. Em For the Love of God, soa quase espiritual, transcendental. Mas em boa parte de sua obra, parece estar trancado em um laboratório, criando música mais para guitarristas do que para ouvintes comuns. Vai é um gênio técnico, mas raramente fala com o público além da bolha.

O contraste entre os dois mostra o dilema dos virtuosos: ou você encontra a melodia universal (Satriani) ou fica preso na técnica pela técnica (Vai).


O legado moderno: Frusciante, Jack White e St. Vincent

A ideia de que a guitarra morreu é exagero. Ela apenas mudou de lugar.

John Frusciante trouxe emoção crua e minimalismo ao Red Hot Chili Peppers. O riff de Under the Bridge é delicado, melódico e marcante. Em Californication, os arranjos mostram que simplicidade pode carregar um álbum inteiro. Frusciante nunca quis ser o “mais rápido”: preferiu ser o mais humano.

Jack White fez o que parecia impossível: em plena era digital, ressuscitou o espírito do blues de garagem. O riff de Seven Nation Army é provavelmente o último grande riff globalmente reconhecido, cantado em estádios de futebol como se fosse um hino tribal.

St. Vincent (Annie Clark) representa outro futuro: guitarras com timbres estranhos, experimentais, que soam quase eletrônicos. Em músicas como Los Ageless e Cruel, ela prova que a guitarra ainda pode surpreender, sem depender do clichê do solo heroico.


Conclusão: legado não se mede em notas por segundo

A história da guitarra é cheia de mitos. Mas legado mesmo é raro. Hendrix reinventou o instrumento. Iommi criou um gênero. Eddie Van Halen mostrou que inovação e diversão podem andar juntas. Clapton e Page ajudaram a consolidar o rock, mas não quebraram paradigmas. Frusciante e Jack White provaram que ainda há espaço para reinvenção.

Já Malmsteen e outros shredders mostraram que a técnica, sozinha, é uma armadilha: impressiona na hora, mas não cria memória coletiva. O futuro da guitarra depende menos de malabarismo e mais de emoção, simplicidade e inovação.

Enquanto houver riffs como Seven Nation Army e solos que emocionem como Voodoo Child, a guitarra continuará sendo a espinha dorsal do rock.


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Questões que não querem calar

Quem foi o último guitarrista realmente revolucionário?
Eddie Van Halen. Depois dele, ninguém redefiniu tanto a guitarra.

Eddie Van Halen foi o último “deus” da guitarra ou ainda veremos outro?
Provavelmente foi o último. O rock perdeu o centro cultural que permitia criar ídolos universais.

Yngwie Malmsteen é gênio ou apenas exibicionista técnico?
Mais exibicionista. Respeitável como instrumentista, mas seu legado é restrito a músicos. Não criou hinos.

A guitarra está em decadência ou apenas se reinventando?
Se reinventando. Jack White, Frusciante e St. Vincent mostram que o instrumento ainda tem futuro fora do pedestal clássico.


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Por Rafael Drummond